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DEPOIS DO APOCALIPSE(*)
13/2/1982 - A frenética destruição que se verifica e se torna, dia a dia, palpável, mesmo aos mais distraídos e hedonistas; a crise que fecha cada vez mais o futuro das pessoas num beco sem saída, sem oxigénio, sem clorofila, sem água, sem vida, sem esperança, sem futuro; a desolação de «terra queimada» - em sentido estrito e em sentido lato; a avassaladora mediocridade dos plásticos e dos sintéticos, das nitreiras e dos rios-canos de esgoto a céu descoberto; o desprezo implícito e o endurecimento nas relações entre as pessoas; a hipocrisia das palavras «fraternais» em boca de gente que sabemos só conhecer o ódio, a vingança, o terror; a confusão, o caos, a escalada de morte, o ciclo vicioso da destruição, o beco sem saída de um autofagismo canibalesco, enfim, tudo o que compõe a crise ou angústia do nosso tempo, tudo isso talvez só tenha um sentido dramático para quem esteja muito apegado à matéria.
Tudo isso se deveria transmutar em motivo de júbilo, se não tivéssemos perdido o sentido religioso da vida. Se a nossa concepção do mundo não fosse - como se costuma dizer- materialista.
Se as fés num mundo de coisas relativas fossem a fé, só não nos daria tristeza verificar a generalizada corrupção que o mina.
Se as fés num mundo de coisas relativas fossem a Fé, só poderíamos entender o grande rio de morte, medo, miséria, violência. terror, o grande caos, a grande catástrofe como a sólida prova de um mundo que forçosamente se move em outras ondas e noutros níveis de matéria não corruptíveis, nem perecíveis.
Se pudéssemos ver a catástrofe ecológica como a reconfirmação da ordem transcendente que violámos, como a reafirmação de uma fé que está para lá da natureza, do mundo, do ciclo das reincarnações, do bem e do mal, da morte e da vida, do dualismo e do sofrimento, então a catástrofe ecológica, a crise ecológica, os becos sem saída, os cercos irreversíveis, a escalada, a apoteose da morte e mentira teriam o supremo sentido da suprema lição que nos é dada no grande livro do universo para sabermos, in extremis, o norte da bússola.
A crise, no fundo, é apenas porque estamos desorientados. Sem bússola. Sem norte. Sem fé.
A DIALÉCTICA DAS ALTERNATIVAS: UMA DINÂMICA PARA SAIR DO ATOLEIRO
Em termos profanos, a lei de causa e efeito é o que as tradições de todos os tempos sempre consideraram o «karma» ou implícita inter-relação entre tudo o que existe no universo.
«Tudo se liga a tudo» - proclamam modernamente os ecologistas.
Em termos de filosofia europeia, esse reconhecimento da trama ou rede universal recebeu, em certos momentos históricos, a designação de dialéctica. Mas o budismo «Zen» vulgarizou a dialéctica yin-yang em tempos muito remotos, e muito antes que a Europa descobrisse «ambos os lados da realidade».
Não há verso sem reverso - sabia-se já no «I Ching» e em todos os textos sagrados da antiguidade oriental.
Mas hoje, em 1982, saber-se-á que todo o verso tem um reverso?
Quando a poluição surge e todos se espantam, não será um primeiro sinal de que nunca se ignorou de maneira tão primária, como hoje, esse princípio universal e eterno de que «todo o verso tem um reverso»?
A tragédia do homem moderno, dito civilizado, é afinal a teimosia de ignorar a mais elementar das leis físicas: todo o efeito tem uma causa, todo o verso tem um reverso, tudo se liga a tudo.
Ecologista, neste sentido, será apenas o que aplica em todas as circunstâncias da realidade a dialéctica yin-yang. Quer dizer, a dinâmica da realidade na sua totalidade.
Qualquer triunfalismo ou optimismo denuncia essa «ignorância» da dialéctica.
E todo o triunfalismo, optimismo ou moralismo só podem conduzir a um dogmatismo feroz.
A elasticidade do princípio único - «yin-yang» - é o contrário da rigidez dogmática.
Não ver que todo o processo de decadência é a outra face do que se designa por prosperidade, e que todos os retrocessos verificados nesta sociedade são o outro lado do progresso, eis a cegueira mental mais trágica e penosa do nosso tempo. Cegueira que é total no tecnocrata de todas as tendências políticas, e no tecnoburocrata ainda mais cerrada.
Ver claro é ver ambos os lados da realidade.
E saber que todo o vinho tem borras quando se transforma em aguardente e que a ganância do consumo, motor das economias de mercado, tem o seu reverso em todas as doenças do consumo, e no espectáculo de morte e degradação que essas sociedades apresentam.
Nada acontece por acaso - é outra forma de traduzir o aforismo básico da dialéctica.
Mas toda a classe científica, técnica e política actua como se «tudo acontecesse por acaso» e como se o mundo fosse um caos de onde caíssem permanentemente do céu surpresas e mistérios, cuja causalidade o homem ignoraria. O homem tornou-se exactamente o senhor do universo quando religou (o efeito à causa), quando pensou, quando raciocinou, quando recusou a fatalidade. Quando deixou de atribuir a Deus o que era exactamente de sua culpa e responsabilidade. De sua causa.
Uma sociedade que hoje tudo atribui a falsas causas - ou culpas - é a imagem da decadência e do obscurantismo.
Uma gripe atribuída a um vírus - é grotesco.
Mas toda a «ciência» hoje se manifesta nesta inversão de termos. Jamais indica a verdadeira causa, que é o verdadeiro culpado. A ciência vendeu-se, prostituiu-se. E, com ela, toda uma sociedade que se diz fundada na ciência.
Ioga ou religião significa este entendimento total da inter-relação de tudo a tudo.
Ecologismo que não faça o processo radical desta corrupção de base nos conceitos originais da verdade, só pode efectivamente concorrer para afundar na miséria, na morte, na mentira, um mundo que apenas quis ouvir e conhecer um dos lados da multiforme realidade. Quem apenas proclamou o princípio do prazer teria, tarde ou cedo, que saber (e pagar duro) que o reverso do prazer é a dor e o sofrimento. E vice-versa.
Compreender a dor e o prazer, com a mesma neutralidade e a mesma objectividade científica, é tudo o que se necessita para uma revolução cultural. Da qual o ecologismo é a chave.
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(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 13/2/1982☻☼
sábado, 6 de dezembro de 2008
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