sábado, 20 de dezembro de 2008

SUBLINHADOS 2012

1-3-egipto-2> antologia – caminhos do maravilhoso

Domingo, 26 de Maio de 2002 – Entendo como antológicas as páginas a seguir transcritas do livro «Eça de Queirós e o Egipto Faraónico», de Luís Manuel de Araújo, Editorial Comunicação , Lisboa, 1988. Abordam dois nomes egípcios – Kheperer e Maat – que os livros em geral e os de Etienne Guillé em particular, costumam grafar de maneiras diferentes. Poderá um dia saber-se qual a grafia correcta e exacta (a ortografia) de palavras que resultam de «traduções» dos hieróglifos?

KHEPERER

Na verdade, os hieróglifos estão sempre presentes nos vestígios materiais da civi-lização egípcia, mesmo quando, aparentemente, eles não se vêem na sua forma de signo de escrita. Assim, um escaravelho do tipo amuleto, sem inscrições, é, por si só, um hieróglifo, um signo: é Khepri, divindade solar, surgida sem ter sido gerada, tida em tempos antigos como manifestações do netjer Atum e depois amplamente consagrado como símbolo de ressurreição; é kheperer, escaravelho, insecto coleóptero coprófago (Scarabaeus sacer), considerando que o sol, na assunção das suas várias for-mas, começava por surgir no céu sob a forma de escaravelho; é, ainda, kheper, o verbo transformar, vir à existência, produzindo em si próprio a sua própria génese, na busca das formas perenes, com a múmia do defunto e as representações do quotidiano nas paredes da tumba reanimando-se para a vivência do Além graças a transformações (kheperu) autogeradas.
Além disso, e por estarem sempre presentes, os hieróglifos não poderão passar des-percebidos em qualquer estudo que se faça sobre o Antigo Egipto, seja a nível social, económico, religioso, político e artístico. Concluir-se-á que o conhecimento dos hieróglifos, pelo menos o conhecimento dos traços essenciais da escrita hieroglífica, é indispensável para o estudo do Egipto faraónico. Mafiche hieroglif, mafiche assar — dizia-nos, com alguma insistência, o Professor Said Guhari, egiptólogo leccionando na Faculdade de Arqueologia da Universidade do Cairo. Ou seja, e em tradução livre, «sem hieróglifos não há arqueologia (faraónica)», que o mesmo é dizer: sem um razoável, equilibrado e suficiente conhecimento da escrita hieroglífica, com mais dificuldade se apreenderá a civilização faraónica.
Curioso e propositado será lembrar que, há cem anos atrás, Adolfo Coelho, na sua intervenção durante a realização das polémicas Conferências do Casino, criticava o facto de no Curso Superior de Letras (antepassado da actual Faculdade de Letras) se falar do Antigo Egipto sem se conhecer os hieróglifos:
«Um professor abriu ali (no Curso Superior de Letras) um curso sobre o Egipto Antigo; este facto é simples na aparência, mas significa muito pelas circunstâncias do professor. Este nunca tinha ido ao Egipto, nem tinha estudado o hieróglifo; estava portanto na incapacidade absoluta de exercer a mínima crítica sobre os materiais que tinha que consultar, crítica tanto mais necessária quanto o estudo das coisas egípcias, que apesar dos seus progressos, encerra ainda muitas obscuridades e contradições sobre pontos capitais (...)». (A Questão do Ensino, intervenção de Adolfo Coelho feita em 19/6/1871; com actualização da ortografia.)
Com esta invocação se deseja, tão-somente, reforçar a ideia de que a escrita hieroglífica (e, de resto, as suas variantes hierática e demótica) é importante para um mais amplo e alicerçado conhecimento da civilização egípcia. Obviamente que não se entende que quem leccione uma disciplina, seja no ensino secundário ou no ensino superior, em que tenha de evocar, por exemplo, a civilização do México pré-colombiano, seja obrigado a frequentar um estágio na antiga terra dos Aztecas e Toltecas, ou ainda que conheça os hieróglifos aztecas. O mesmo se dirá a respeito de quem tenha de abordar antigas civilizações, seja a grega, a romana, a suméria ou a egípcia... Mas conhecendo--se pessoalmente os monumentos e os vestígios deixados por um povo (de quem se está falando, numa sala de aula, no decurso da leccionação), não há dúvida que isso facilitaria a abordagem do tema. E as línguas são, de certo modo, monumentos dos povos.

MAET

Por diversas vezes, nas páginas deste «Eça de Queirós e o Egipto Faraónico», se alude à maet. Algumas palavras poderão ser ditas a propósito deste conceito e da figura divina a ele ligada, Maet, frequentemente representada nos baixos-relevos dos templos ou nas pinturas dos túmulos, na estatuária, nas ilustrações do chamado «Livro dos Mortos», etc.
Ambas, a maet e Maet, são indissociáveis do estudo da civilização faraónica, tanto a nível religioso como a nível político, social e económico, para uma melhor compreensão do faraonato como instituição fulcral da longa história egípcia.
Temos, pois, Maet e maet. Uma prévia distinção, subtil, se fará entre o conceito (maet) e a respectiva personificação divina (a deusa Maet, filha de Ré).
A deusa Maet era representada como uma graciosa jovem, de cabelos descendo sobre os ombros, ostentando na cabeça, presa por uma fita, uma pena de avestruz. A deusa podia ser representada de pé segurando nas mãos, ou numa das mãos, alguns dos mais eficazes símbolos profilácticos, como o uas e o uadj, ceptros também usados por outras divindades do panteão, masculinas ou femininas. Podia ainda ser representada de joelhos ou sentada, o que com alguma frequência sucedia, podendo então exibir, entre outros, o ceptro user (como se observa no prenome de alguns faraós para a formação do nome teóforo Usermaetré), ou o signo ankh, outro símbolo profiláctico, sobre os joelhos, não faltando na cabeça a inseparável e referenciável pena de avestruz. Podia ainda aparecer, de pé ou de joelhos, com os braços abertos, deles partindo longas asas de abutre, evocando a protecção dispensada pela deusa.
Na escrita hieroglífica, a netjerat da justiça e da verdade é representada por uma figura ajoelhada, geralmente com o signo ankh sobre os joelhos e com a pena de aves-truz na cabeça. A própria pena (que também é símbolo do deus Chu) pode aparecer isolada para simbolizar Maet (substantivo próprio) ou maet (substantivo comum) e maé (adjectivo), como seguidamente veremos.
Qualquer dos signos pode aparecer como ideograma ou como determinativo (mais precisamente determinativo ideográfico):
[esta parte do texto, acompanhada de vários hieróglifos, terá de ser consultada na obra que estamos a antologiar, «Eça de Queirós e o Egipto Faraónico», páginas 29 e 30]
O conceito de maet é essencial na filosofia egípcia, e para ele ainda não se encon-trou uma eficaz, completa e satisfatória tradução: por isso, «incapazes de o fazermos melhor», traduzimos, algo aliviados, por «justiça» ou «verdade» (François Daumas).
No entanto, maet é algo mais: no campo das relações sociais e nos preceitos éticos a prossecução de maet conduz a um ideal ao qual não falta alguma dose de confor-mismo a que é preciso submeter-se, pois a contravenção às leis maéticas conduziria à subversão, ao caos, e seria então o desmoronar do universo equilibrado. No fundo, tudo se mantém harmoniosamente no seu lugar, desde o acto primordial do criador, graças ao equilíbrio providenciado por Maet. Com ela, e por ela, se cumpre a maet no quotidiano: ela é a norma jurídica que submete os actos de cada um às leis que todos conhecem; é a verdade que faz coincidir o pensamento com o gesto, com as coi-sas (khet); é a justiça que impõe a execução de todos os actos segundo o direito, con-suetudinário, mas omnipresente; enfim, é, segundo Daumas, «a regra do mundo que faz girar regularmente o mecanismo do universo».
Ligando-se Maet e a maet aos conceitos de ordem, equidade e justiça, correspon-dia assim à ideia de bom governo e sábia administração, sem que tal signifique poder traduzir-se maet por «autoridade» ou «governo», «administração» ou mesmo «lei», como avisa J. Wilson: afinal, a maet «era a qualidade própria dessas funções aplicadas ou exercidas».
Poderá ainda o conceito ser definido como sendo «a justa medida das coisas» (E. Hornung), «a ordem universal, a ética, que leva cada um a agir, em todas as circuns-tâncias, de acordo com a consciência que tem dessa ordem universal» (Serge Sauneron). Enfim, maet era a «exactidão, honestidade, honradez, lealdade, rectidão, justiça, equidade, harmonia, fidelidade, clareza»... (Lucie Lamy).
Não admira, pois, que o símbolo da deusa Maet fosse utilizado como emblema iden-tificador pelos funcionários judiciais, que usavam, sobretudo na Época Baixa, uma pequena efígie de Maet, geralmente de lápis-lazuli, pendurada ao peito. É que os juizes eram sacerdotes da deusa Maet, devendo praticar a maet no exercício das suas fun-ções. O tjati, «primeiro-ministro» (ou vizir, como por vezes se designa), deveria «falar segundo Maet», dando vivo exemplo de verdade com a prática da justiça.
Acima do vizir, acima de tudo, o faraó deveria ser reflexo de Maet. E se Maet era «a verdade nas palavras; a justiça nos actos; a rectidão no pensamento; a equidade no juízo; a regra na conduta; o direito na elaboração das leis» (François Daumas), então estava traçado o programa de governo do soberano.
O faraó preserva a ordem universal, a ordem estabelecida, e fá-lo em várias frentes, onde a maet esteja em perigo de soçobrar: combatendo as feras dos desertos limítro-fes, contendo a invasão das areias do deserto, através da organização dos trabalhos de protecção às culturas, combatendo o inimigo asiático, núbio ou líbio, domesticando os caudais do Nilo para que não fossem excessivos, providenciando de tal forma que, nas épocas de seca, as águas pudessem chegar aos locais a irrigar, zelando para que os celeiros se mantivessem repletos para que em tempo de má colheita os camponeses não ficassem sem o mínimo sustento, erguendo sempre e sempre novos templos e monu-mentos, impedindo que o forte esmagasse o fraco, velando para que a ordem social não fosse sacrilegamente alterada. Desta forma se repeliam as forças da anarquia e do caos e se estabelecia a maet.
Também com a repetida actividade de construção de templos e de reparação daqueles que ameaçavam ruína ou que se encontravam decrépitos se integrava a soberania do faraó na renovada acção de manter e robustecer a maet: «Praticamente, todas as actividades da religião estatal egípcia, incluindo a própria construção de templos, eram votadas à manutenção da maet, porque desta forma os deuses ficariam satisfeitos e o Egipto disso beneficiaria» (Paul Johnson).
Templos, cheias, secas, destruição das feras selvagens, dos inimigos das regiões limí-trofes, alimentação para todos, água para beber e para irrigar, fertilidade, felicidade... em tudo se encontra a maet, e tudo gira harmoniosamente quando ela está presente. Quando falta é o caos, o regresso aos tempos distantes e míticos em que o demiurgo ainda não havia criado a ordem cósmica.■

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