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sexta-feira, 20 de Dezembro de 2002
«UM SORRISO NOS OLHOS DA ALMA»(*): O CULTO DA AMIZADE ENTRE OUTRAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA(**)
19-8-1990-Nome grande da literatura contemporânea, Lawrence Durrell pode permitir-se pequenos «divertimentos» autobiográficos como este que, sob o título de «Um Sorriso nos Olhos da Alma», a Quetzal acaba de lançar em língua portuguesa(*).
Lawrence Durrell, que nasceu em 1912 na Índia (Himalaias), facto que, como se verá neste livro, não foi de modo nenhum acidental mas marcou todo o seu percurso de homem e de escritor, tem o génio da comunicabilidade e a sua imaginação é sempre brilhante, quer quando cria esse romance-chave do nosso tempo que é «O Quarteto de Alexandria», quer quando tenta a narrativa de «suspense» com esse fantástico romance-fábula que se chama «O Labirinto Negro», quer quando troca cartas com outro grande do nosso tempo, o escritor Henry Miller, em muitos aspectos seu homólogo.
Sobretudo, ele tem a arte de transformar um pequeno «fait-divers» em ponto de partida para as histórias mais fantásticas ou as reflexões mais profundas sobre o destino humano. Ambas as narrativas deste volume partilham esse seu génio transfigurador, ainda que ambas se possam apenas considerar relatos meramente autobiográficos, na medida em o narrador se assume como o próprio autor, sem qualquer disfarce ou pseudónimo.
Lêem-se como prodigiosos exercícios de imaginação, com base em uma linguagem fulgurante, que, em todas as circunstâncias, faz o «estilo Durrell». Esta arte de transmutação alquímica da palavra é, aliás, um dos pontos de contacto mais curiosos entre Durrell e o seu
«irmão gémeo», Henry Miller, seu correspondente e amigo de sempre.
Contando coisas da sua vida, não é monótono nem vulgar, mas empolgante. Duas personagens marcam as duas histórias deste pequeno grande volume de Durrell: o chinês Jolan Chang, que apronta um livro sobre sexo e taoísmo na casa do escritor, onde fazem ambos constante «brain storming»; e Chantal de Legume que, com ele, percorreu os locais onde Nietzsche se declarou a Lou Andréas-Salomé, na tentativa de melhor compreender o
autor de «A Genealogia da Moral» e «A Origem da Tragédia». Com o retrato entre o real e o fantástico destas duas figuras, Lawrence Durrell avança nos meandros da alma humana com a lucidez vertiginosa e o encanto de linguagem mágica que são seu timbre e que nele não dão mostras de envelhecer. Talvez porque tenha aprendido com o sábio Jolan Chang, e suas doutrinas sobre o orgasmo, o segredo de nunca envelhecer.
O CULTO DA AMIZADE
Saber se uma «amizade particular» pode ter mais encantos que uma devoradora paixão física, é apenas um dos múltiplos caminhos apontados neste livro de Lawrence Durrell, breve mas carregado de consequências e direcções, como uma encruzilhada, uma rosa dos ventos de onde se parte para os quatro pontos cardiais, para os mil pontos cardiais do universo e da vida.
São dois relatos da Amizade que o autor cultiva, tal como o seu inseparável companheiro Henry Miller, como um jardim suspenso. Dois encontros, como já se disse, constituem o ponto de partida para a história: um, com o sábio taoísta que apronta um livro sobre a sabedoria primordial do «ki» energético para uso do hedonismo ocidental; outro, com a jovem Lou, uma sensível alma de mulher à procura, como ele, do mistério que foi a passagem mortal pela vida de um senhor chamado Frederico Nietzsche.
É com estas bagatelas que o livro, o pequeno livro de L.Durrell, se basta. Mas não esquecer que o «Tao Te King», constantemente citado pelo escritor, ainda tem menos páginas do que esta narrativa, sem deixar por isso de conter toda a sabedoria das fontes primeiras e sem deixar de constituir, por isso, a placa giratória de onde emana a essência da sabedoria «yin-yang».
GENES PROPÍCIOS
Para um ocidental (de)formado nos pressupostos e preconceitos de uma cultura baseada na oposição dos contrários, poderá considerar-se verdadeiramente notável o esforço de aproximação e «aggiornamento» realizado pelo autor de «Mountolive». Irlandês pelos genes da mãe e inglês pelos do pai, mas nascido geograficamente perto do País da Sabedoria, essa circunstância meramente tópica tê-lo-á ajudado, talvez como predestinação, a dialogar com a dialéctica dos contrários - a lógica do contraditório - e a demonstrar, na sua obra romanesca, a vitalidade criadora que a síntese dos opostos necessariamente pode motivar. Mas é também isso que o leva a não compreender aquilo a que curiosa e insistentemente chama heterosexualidade, nas acesas discussões com o monge chinês seu hóspede.
Este rápido apontamento de memórias transfigurado em ensaio de iniciação e karma yoga, relaciona-se de maneira exemplar com esse princípio universal da doutrina taoísta: a parte está no Todo e o Todo está na parte. Deriva daí a sensação de plenitude que um texto como este, pequeno de tamanho, nos consegue transmitir.
Servindo de alavanca à faina iniciática de um escritor que foi sempre muito mais do que mero literato de consumo, «Um Sorriso nos Olhos da Alma» poderá constituir, para o desprevenido, alienado, desatento e infeliz consumidor de «best-sellers», a melhor introdução ao mundo interior de Durrell, um autor que trouxe para a literatura ocidental o fascínio da sabedoria iniciática e esotérica, amplamente demonstrado, por exemplo, em livros seus como «O Labirinto Negro» (1961), curiosamente um dos menos citados e mesmo omisso em fichas de dicionário de origem inglesa.
Se o «small is beautiful» - e é preciso sabê-lo para entrar na onda de Durrell - esta narrativa breve vale por todos os extensos relatos da abominação e da abjecção, ou seja, o fardo insuportável que dá hoje pelo nome-cão de romance contemporâneo.
PARA LÁ DO «BLÁ-BLÁ»
Um dos pontos cardiais que se destacam nesta «rosa dos ventos» é a valorização do «acto imediato», o que um revolucionário traduziria por «acção directa», face ao «blá-blá» verbalista e ao raciocínio desactivado de que padecemos.
Se a perspectiva é a da dialéctica taoísta, o texto de Durrell pode aspirar a ser uma iniciação à iniciação, pesem embora nele ainda os genes do hedonismo ocidental, corruptor de menores, perdulário de energias, condenado à eterna entropia: só por isso ele hesita em reconhecer, nas fontes que tem ao pé, o primado da sabedoria sobre a alienação ideológica, os níveis de percepção sensorial e outros enganos daí advindos.
Ele diz no livro, aliás, que faz as malas e abala para Lhassa, capital do Tibete, se um dia quiserem fazer dele mais um intelectual à francesa. Neste sentido, a presença de Durrell na ordem literária bem-pensante, tem sido e continua a ser saudavelmente polémica.
Quando já não se aguenta mais a «kunderização» da literatura, há sempre o recurso de ameaçar a ordem estabelecida e os críticos da moda com a metáfora do Manuel Bandeira:«Vou-me embora para Pasárgada». Alguns já lá estão, embora tenham de continuar a fazer corpo presente nesta choldra das crises bolsistas, de oito em oito anos, a que se reduz, afinal, a gloriosa cultura ocidental de batatas e petróleo.
Durrell é dos que conseguem estar na charneira. Se no Médio Oriente os ocidentais levarem longe demais a sua vocação canibalesca, indissociável do capitalismo judaico-cristão, ele deixa o quarteto de Alexandria, deixa o quinteto de Avinhão, deixa os limões amargos e as águias brancas sobre a Sérvia, o livro negro e mesmo o labirinto da mesma cor, mete-se ao caminho e pisga-se.
Sabe que encontrará, nas imediações dos Himalaias, um velho lama tibetano, «bem constituído e rubicundo», com um sorriso de simpatia, habitual nos habitantes da região, dirigir-lhe em inglês as únicas palavras que sabe proferir nessa língua: «Olá, meu caro, benvindo à nossa terra das neves eternas.»
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(*) «Um Sorriso nos Olhos da Alma», de Lawrence Durrell, tradução de Helena Cardoso, Quetzal Editores
(**) Este texto de Afonso Cautela, deve ter ficado, indubitavelmente, inédito. Há uma versão reduzidíssima, em wri, essa é que deve ter aparecido em «Livros na Mão»
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
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