segunda-feira, 27 de outubro de 2008

LEITURAS 2012

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16-8-1990

LEITURAS DE VERÃO:ABORDAGEM POR ESTIBORDO

Gianni Vattimo, um estudioso italiano da filosofia que os alunos portugueses têm introduzido paulatinamente no nosso mercado livreiro, estava predestinado, pela delicadeza do toque, a «introduzir Nietzsche» (*) na cabeça das novas gerações, essas que nunca leram Luckacs, o tal que acusava o filósofo do Alto Engandine de ter inspirado as atrocidades nazis.
Afinal, viria a provar-se mais tarde e muito recentemente, que não era Nietzsche mas Heidegger quem se banqueteava com os botifarras nazis. Ironias do destino, que se espera venha a dar-nos outras surpresas tão interessantes como esta que, à boca de cena, nos permite ver reabilitado um filósofo dos mais malditos e amaldiçoados de toda a cultura ocidental.
Divulgador «soft» (como diria António Guerreiro) do pensamento filosófico moderno, o publicista Gianni Vattimo procede com grande habilidade à desmontagem do bicho, evitando picar-se nos espinhos: com a desenvoltura de quem dá uma lição na Faculdade de Letras de Lisboa, Vattimo tenta a abordagem do filósofo do «bem e do mal» por estibordo, procurando não evidenciar as heresias do profeta mas sem distorcer a personalidade iconoclasta desse que é o maior destruidor de mitos da cultura ocidental.
Pensador desconfortável, portanto, verdadeiro deserto para hedonistas e outros economistas, praticante do karma yoga, completamente expulso da história da filosofia e outros lugares selectos, por não ter deixado inteira uma só das suas ilusões e quimeras, o espanto expressa-se apenas nesta pergunta: porque teima a filosofia em se apropriar de quem a contestou e subverteu?
A este respeito e como se sabe, ele teve a intuição que lhe permitiu, no magma incandescente do que chamou o «dionisismo», tactear um pouco da realidade que toda a filosofia ocidental falsificou e, com a ajuda dos deuses e dos Vattimo, continua falsificando. Ao que vem, portanto, a reabilitação do herege?
Embora com luvas e munido das necessárias pinças, Vattimo realiza a obrigação didáctica de apresentar Nietszche em via reduzida e como leitura aconselhável a menores. No fundo, é uma forma possível e suportável de suportar um ser humano, «demasiado humano» como foi Nietzsche, os equívocos e mistérios de um cérebro tantas vezes considerado doente e aberrante pelas maiores sumidades médicas.
Baldados que foram os esforços para meter disciplinadamente este Frederico em qualquer das histórias de que a História se alimenta - a da Literatura, a da Filosofia, a da Teologia, a da Psicologia e a da Paleontologia - só resta um caminho honesto ao divulgador: confessar que o homem dos bigodes farfalhudos, o lendário louco que beijava na rua o cavalo chicoteado por um magarefe mal disposto, o inversor e subversor de todas as marchas e ordens, continua a ser consumível embora não seja catalogável em nenhuma disciplina universitária que diploma pessoas para a vida.
Dá-lo assim avulso, desligado do contexto onde fazia faísca, é a forma de introduzir Nietszche nos círculos elegantes da moda, o que - diga-se - Vattimo faz na perfeição. Poderá então saber-se o «como» e alguns «porquê» que determinaram uma das mais inquietantes aventuras intelectuais do Ocidente, pouco dado a voos de grande altitude.
Ainda hoje em digestão lenta por um sistema que já provou, em todas as circunstâncias, ter uma capacidade infinita para deglutir o que o contesta, Nietszche colocado de novo nos circuitos da moda, e desta vez nos círculos da moda universitária, faz pensar na fartura. E se Vattimo não traz, com seus sequazes e capatazes, alguma na manga.
Não tendo Nietzsche, nem uma só linha a ver com o que oficialmente se entende por instituição filosófica, há que desconfiar e perguntar, afinal, ao que vêm tantos comentadores e divulgadores.
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(*) «Introdução a Nietzsche», de Gianni Vattimo, Editorial Presença■

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