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sábado, 14 de Dezembro de 2002-scan
O SISTEMA E OS FUNCIONÁRIOS DO SISTEMA:CIENTISTA, TÉCNICO, POLÍTICO
Fala-se de "cultura ocidental" e, embora a expressão não tenha grande rigor terminológico, entende-se muito bem o que significa. Qualquer coisa de vasto mas também de preciso, de complexo mas também de limitado, coeso, uno, se estende e entende sob a referida designação.
Uma cultura é uma ordem hierárquica, com elementos componenciais constantes, factores específicos, ingredientes necessários que lhe dão corpo e gosto (sal) e unidade, lhe recortam o perfil e marcam ao fronteiras. Mas, principalmente com uma mitologia própria. Isto - o sistema de mitos – marca, define, fundamenta uma cultura.
Quando se fala de "cultura ocidental" sabemos do que se fala: trata-se de um território com leis e fronteiras "alfandegárias" estabelecidas. Trata-se de um "país" com os seus costumes, a sua história, a sua geografia, e, também, com seus funcionários e sua Burocracia. Dentro deste "país" é certo que várias ordens nacionais se contêm; várias línguas se falam; vários regimes políticos se adoptam; e até, imprecisamente, diríamos que várias "culturas" se desenvolvem, culturas que são antes sub-culturas subordinadas a pontos capitais comuns - em que estão de acordo, em que têm de estar de acordo - por muito que discordem dos secundários, aqueles onde não é posta em risco e em questão a sobrevivência do regime cultural, a ordem da própria Ordem, regime, ordem ou espaço cultural onde:
1º - a guerra ao mito é a primeira palavra de ordem
2º - o princípio da não-contradição é "universalmente” aceite, adoptado e respeitado, desde o mais alto funcionalismo cultural - profissionais da filosofia, da ciência, da técnica, etc. - até aos que se limitam a viver no caldo cultural que lhes preparam
3º - a primeira e máxima contradição de um regime baseado na não-contradição é a existência de um sistema de mitos todo ele baseado na guerra aberta e perpétua ao mito
Supunhamos um observador (1) que faça com a cultura ocidental o que os representantes ou altos funcionários desta têm feito com as culturas não ocidentais.
Que veria ele? Que concluiria? Que diferenças e semelhanças encontraria entre a sociedade dita civilizada e as sociedades ditas primitivas?
Veria ele na cultura ocidental uma cultura sem mitos ou uma cultura onde os mitos grassam de maneira devastadora?
E não concluiria ele que a história do homem ocidental é a história das suas mitologias tanto quanto a história dos Bochimanes é a história dos mitos próprios dos Bochimanes?
E não concluiria ele que a questão é menos a de ser defeso ou indefeso aos mitos - como pretendem os esclarecidos funcionários da razão - do que a de quem terá mitos mais belos, mais profundos, mais evoluídos, mais humanos: se os fabricantes de sputniks-deuses, se os adoradores da serpente emplumada?
É claro que os profissionais da razão, os funcionários encarregados de zelar pela ordem da cultura ou regime ocidental, dizem que tais contradições são aparentes umas e inexistentes
outras; e que se explicam porque são sempre homens de acção a corromper as ideias puras dos puros filósofos e dos puros cientistas
Mas aqui reside outra contradição da tal cultura baseada na não-contradição, aquela de onde todas as outras dimanam e com a qual formam um todo inextricável
Os profissionais da razão não se podem desculpar com os da acção porque razão e acção são indesligáveis. Alguns filósofos - os pragmatistas - o afirmam e todos conhecem os famosos axiomas de Paul Langevin - la pensée née de l’action , retourne à l’action -, de Augusto Comte – Science, d’où prévoyance ; d’où action - , de Francisco Bacon.
Com ou sem protesto dos puros filósofos e dos cientistas puros, a obra deles é sempre, directa e indirectamente, comprometida na acção e cúmplice da obra do político. A razão poderá dar, individualmente, origem a obras isentas de contaminação política: mas quando se diz que a razão é indesligável da acção, compreende-se a razão ao longo do processo histórico e não a razão deste filósofo ou daquele cientista. A razão aqui significa "logos", palavra que, como se sabe, se opõe historicamente a "mythos".
Não colhe, pois, o argumento do filósofo especulando no seu gabinete (mas escrevendo livros para fora do gabinete...), ou do sábio investigando no seu laboratório (mas enviando relatórios para fora do laboratório... )
Importa mostrar é que está na lógica do saber aliar-se ao poder, na lógica e dinâmica da ideia prolongar-se e "incarnar" na acção.
Importa mostrar é que a cultura à qual a ciência, o hiper-cultivo da ciência, imprimiu uma directriz, uma lógica e uma dinâmica internas, terá de processar-se segundo leis que, mesmo por serem leis, não admitem excepções; (o facto de não se conhecerem ainda essas leis e de que o términus do processo não possa delinear-se ainda em linhas nítidas, não impede que tenhamos de crer nesse términus e na inevitabilidade das leis que levam lá. (2) .
Importa mostrar é que a ordem de coisas ocidental, se não tem fatalmente que conduzir ao aviltamento do homem, aos paraísos nacionais socialistas e internacionais socialistas e arredores concentracionários e à guerra, - em 99% dos casos assim tem acontecido, assim está acontecendo e tudo leva a crer que assim continuará a acontecer.
Se acaso há uma probalidade em cem de assim não suce-der, não seremos nós que deixaremos de apostar desde já nessa probabilidade, nessa saída. Muitos factos nos obrigam a crer, porém, que essa é uma saída falsa, apenas uma entrada para o último e definitivo abismo.
Separadamente, o filósofo e o cientista, o técnico e o político querem e talvez possam considerar-se inocentes.
Mas considerá-los em separado já é um artifício tipicamente racionalista: Real e efectivamente eles são consequência uns dos outros, condicionam-se e determinam-se reciprocamente. São aspectos do mesmo corpo uno e indivisível (do mesmo "corpo místico"...): o Sistema.
O filósofo abstraindo justifica-se com o cientista; este abstraindo justifica-se com o técnico; este abstraindo justifica-se com o político; e este abstraindo justifica-se com qualquer dos outros ou com todos ao mesmo tempo: mas porquê este complexo de culpa? Porquê esta eminente necessidade de auto-justificação?
É que talvez este “passar de culpas" de uns para outros, este “lavar daí as mãos", esta proclamação geral da inocência particular, não tenha apenas uma finalidade platónica e moral - a finalidade de nenhum querer ficar com a fama, embora todos queiram o proveito -, talvez que a guerra fria entre os profissionais das ideias e os da acção e entre cada um destes entre si, tendo por principal finalidade ocultar uma profunda e íntima aliança (que não convém desvelar aos olhos profanos) aliança que é cumplicidade quando se trata de fazer deflagrar a guerra quente, a dos canhões, oculte ainda os verdadeiros termos da verdadeira e
grande guerra: a guerra, cisão ou polémica inicial do logos agressor do mythos.
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(1) As contradições da cultura ocidental só poderão ser denunciadas capazmente por alguém quer fora da ordem, do regime, ditadura ou mitologia racionalista, a observe de fora, cientifica, objectivamente... Alguém que se exponha a todos os riscos da Desobediência: Alguém que pratique o Salto Mortal e a Conversão - Alguém que seja por definição o homem subterrâneo ou obsceno.
(2) O positivismo viu o terceiro estado, estado positivo ou da ciência; faltou-lhe ver o quarto, o da técnica; e o quinto, o termo-nuclear.
Segundo a ordem de ideias positivista, a metafísica chegou onde não chegara a mitologia, a ciência chegou onde não chegara a metafísica; faltou ao profeta Comte profetizar que a técnica há-de chegar onde não chegou a ciência.
Se a metafísica destruiu a teologia (estou certo que o Comte queria dizer mitologia), se a ciência destruiu a metafisica, poderemos concluir o raciocínio positivista dizendo que a técnica se está esforçando por destruir a ciência e, graças aos deuses, nem só a ciência: o que existe à superfície do planeta e o próprio planeta.
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sábado, 14 de Dezembro de 2002-scan
CARTA SOBRE A INEVITABILIDADE DO MITO:DA CIÊNCIA E SEUS MITOS(*)
[(*) Este texto de Afonso Cautela terá sido parcialmente publicado no jornal «República», a fazer fé na prova de censura que cortou parte do texto ]
[26-5-1965, data da prova de censura ] - "Em que consiste a tão apregoada necessidade mítica do homem"? - perguntas tu. E com essa pergunta parece que sou eu o principal interessado em defender o mito ou em proclamar a sua desejabilidade.
Ora o que eu faço é reconhecer a inevitabilidade e não a desejabilidade do mito, inevitabilidade que não inventei mas que ficará demonstrada por uma vista de olhos à história da cultura e das instituições ocidentais, principalmente das instituições políticas.
Eu concordo contigo e com todos os que vêm no mito algo que seria desejável extirpar. Mas não se infere daí que o mito seja extirpável.
À desmontagem e análise de alguns mitos dediquei um ensaio – “O Logro dos Humanismos" ou "Análise de Alguns Mitos" - detendo-me particularmente no mito ou ideia "futuro" e os que dele dependem.
E porque, sujeito embora a rectificações, julgo dar nesse ensaio o contributo que sei e posso para demonstrar a inevitabilidade do mito , dedico-me nestas páginas preliminares a uma espécie de apologia do mito, ou resignada aceitação de uma fatalidade. Já que temos de o aceitar, preparemo-nos para saber aceitar os menos maus.
O mito volta sempre, e a pior atitude que podemos assumir para com ele é a de nos supormos imunizados. São esses, segundo creio, os que mais depressa caem nos mitos mais grosseiros e primários.
Quanto à necessidade mítica, mágica, mística e metafísica do homem, estou convencido de que, sempre, por aqui ou por ali, os homens, principalmente os que se julgam imunizados contra ela, acabam por ser dela as primeiras e mais desastradas vítimas. A atitude mais sensata será uma atitude de vigília e desconfiança sistemática. Não sou pelos mitos antigos mas também não sou pelos modernos. Não sou pelos mitos da ignorância mas também não sou pelos da ciência. Esforço-me para estar além de uns e de outros, mas na medida em que sei não poder dispensá-los, quero saber, entre uns e outros, ou fora de uns e outros, os menos maus.
Tal como tu, sei e afirmo que o mito é indesejável, especial mente quando manobrado pelos profissionais da política ao serviço das suas sardinhas ideológico-propagandísticas. O mito de Hitler permitiu a última grande guerra.
Mas não é com. um abanar de ancas que os do anti-mito conse-guem livrar-se daquilo que no presente estádio da evolução humana é inevitável. Mais vale então que reconheçamos, ao lado dos mitos de ontem e de ante-ontem, os que assolam a mentalidade contemporânea. Mais vale aprender a ver que há mitos "maus" e mitos "menos maus", mitos ao serviço de qualquer ideologia ou política e mitos de criação livre (poéticos, digamos). Mais vale reconhecer que o problema não está em rejeitar pura e simplesmente o mito mas em saber escolher os piores dos menos maus:
Falar em nome da ciência contra o mito, não isenta ninguém de estar impregnado de mentalidade mítica. A ciência, só por si, e teoricamente proclamada, não é suficiente para eliminar o mito.
Os que falam em nome da ciência contra o mito, a magia, a mística e a metafísica. É ver a incoerência com que o fazem, e ver o mito, a magia, a mística e a metafísica da ciência com os nomes de anti-mito, anti-magia, anti-mística e anti-metafísica pelos que substituiram uma adoração por outra adoração, um deus por outros deus,- um dogma por outro dogma, um absoluto por outro absoluto, uma estupidez por outra estupidez, um fanatismo por outro fanatismo, uma superstição por outra superstição..
Não estou contra a ciência, como não estou a favor. Posso dizer pura e simplesmente que não me interessa. Mas estou contra as abstracções, venham elas dos que se confessam idealistas, venham elas dos que bombasticamente se proclamam materialistas. Porque não são uns nem outros, idealistas ou materialistas, o que me importa, porque não me importa uma nem outra mistificação, ume e outra teoria.
Afirmar, teoricamente, uma estrita racionalidade, uma exigente positividade, uma atitude veramente materialista e dialéctica -sim senhor. Mas importa, mais do que afirmar em teoria, ser tudo isso na prática.. Importa o que se é, e não o que se diz que é.
Há que mostrar onde, como e porque subsiste a metafísica de sempre nas anti-metafísicas de hoje, aquelas que se ergueram, no papel sempre e unicamente no papel, no vão propósito de extirpar o remanescente mítico, mágico, místico e metafísico que se julgou ser o da cultura por si própria considerada racionalista.
Não sou contra nem a favor da ciência, como não estou contra nem a favor do mito. Mas verifico que à metafísica, à magia, à mística e ao mito de outros tempos, outra metafísica, outra magia, outra mística e outros mitos (mitologia) se tenta acrescentar, precisamente pelos que combatem o mito, a magia, a mística e a metafísica em nome da ciência. Existe uma mitologia contemporânea cuja principal característica é não querer passar por mitologia.
Pois o que dizer das ideias de Pátria, Estado, Revolução, Classe? Não serão mitos?
E os ismos? O que dizer dos ismos, da ismo-mania ou ismo-latrio? Que dizer de um "ismo" que se professa, que se idolatra, que cegamente se segue? Que dizer dos grupos aglutinados em torno de um ismo? Da mística de grupo? Da mística de tribu? Da mistica de partido?
E da Ciência, da Técnica, da Razão, que dizer? Não serão deuses, absolutos, místicas e mágicas?
E das ideias? Que dizer das ideias? E dos ideais? Do ideal de Belo, de Bom, de Verdade - dos ideais ou valores que dizer? Não serão mitos, não serão ídolos?
E da Máquina, da Vedeta, do Chefe - não serão ídolos?
Que dizer dos adoradores do ideal? E dos adoradores da ideologia? E dos adoradores de um ismo? O que dizer dos maníacos de tantos ismos? E dos maníacos de tantas teorias, de tantas abstracções? O que dizer do homem das quinquenaïs, do Plano, da Solução Maior contra as soluções?
E dos mitos pessoais que dizer? Que dizer da Vedeta? O que dizer do "culto da personalidade"?
E das ideias de Futuro, Progresso, Felicidade - que dizer? Não serão mitos, ídolos, ideais?
E da Acção, que dizer da Acção? Para agir não será necessário e indispensável uma "mística da acção", uma crença ou fé em algo? Uma crença ou f é num absoluto, num relativo que funciona de absoluto?
Para agir, não será necessário forjar ainda as psicoses colectivas, as místicas ou mitologias sociais, as molas da acção que são os optimismos humanistas e os humanismos optimistas? Que dizer destes, dos humanismos? Não serão místicas? Não têm necessariamente que ser místicas? E da política, que dizer da política? Não terá ela que forjar sempre um Olimpo de mitos para uso de todo, já que sem mitos perderia força e prestígio?
E se a razão é indesligável da acção, como pode haver razão sem mitos? Se são os mitos que não deixam arrefecer a acção e se é a acção que por sua vez não deixa arrefecer a razão, não serão os mitos inerentes à razão? Não serão esses mitos ou que o velho Francisco Bacon, Buffon da zoologia humana, classificou de "ídola tribu"?
E da propaganda políticea? Que dizer da propaganda política? Não se baseia toda ela em mitos? A ideologia que se propagandeia- não é sempre uma mitologia? Uma mística? E até uma mágica?
E prometer o paraíso na terra não será o equivalente do mito edénico que põe o paraíso no céu? O que dizer dos amanhãs que cantam? E dos radiosos futuros? E da felicidade objectiva para todos?
E de outras harpas que os integérrimos defensores da ciência, da técnica, do progresso nos tocam? Eles que tocam sempre contra o mito, a magia, a mística, a metafisica?
E todos estes mitos não virão sempre em nome de anti-mito?
Todas estas místicas em nome da anti-mística? Todas estas magias e metafísicas em nome da anti-magia e da anti-metafísica?
Dado que o homem socialmente enquadrado aspira ao absoluto e só realiza (ou nem isso) o relativo, o mito de sinal +, quando existe, serve para representar o que não tem nem pode ter existência concreta, realidade histórica; quando o teatro (ou o cinema) o utiliza, formulam-se problemas que dizem respeito ao homem total e não apenas ao homem social, às relações entre o absoluto e o relativo.
A imaginação do poeta cria o mito que depois outros alimentam e a que dão vida, reconhecendo nele a sua imagem não diminuída nem aviltada, não finita nem mortal, não abjecta.
Mas contra estes mitos de sinal +, levantam-se os mitos feitos para envilecer e aviltar, para adiar e distrair, para entorpecer e adormecer o homem. Para cada Vautrin há 30 bonanzas na televisão, para um D. Ardito, meia dúzia de Bonds. E nem se fala de Édipo, ou de Jean Chrïstophe, ou de Fausto e Zaratustra, Salavin e Peer Gynt, Godot e Cabíria, Raskolnikoff e Prometeu, Pelágia e Zorba.
A imaginação do poeta cria o mito que depois os outros alimentam e ao qual dão vida, reconhecendo nele a sua imagem não diminuida nem aviltada, não finita nem mortal, não abjecta.,
No mito de Joana d'Arc, gerações de dramaturgos têm encontrado o complexo capaz de exprimir a tragédia vivida pela independência individual em face do poderio despótico, do direito em face da força, da ética em face da política, das razões de consciênc contra as razões de Estado.
No mito de Texas Jack, ou do capitão Morgan, ou de Sherlock Holmes encontra a imaginação juvenil a síntese de um espírita aventureiro e investigador... No mito de Alice (e no Orlando de Virgínia Wolf) encontra-se simbolizada a ambição humana de transpor limites, metamorfosear-se, viajar no tempo e no espaço.
No mito de Dom Quixote, a síntese (algo longa) do espírito -idealista contra o barriguismo conformista.
No mito de Sisifo, a eterna escalada do relativo para o absoluto... e a inevitável queda. Camus resumiu nele a sua filosofia.
Os mitos permanecem (e temos de saber como permanecem):
Édipo, Peer Gynt, Zaratustra, Pelágia, Mersault, Erostrate, Jean Christophe, Antígona, Cabíria.
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[(*) Este texto de Afonso Cautela terá sido parcialmente publicado no jornal «República», a fazer fé na prova de censura que cortou parte do texto ]
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sábado, 14 de Dezembro de 2002-scan
O MITO, INVENÇÃO DO LOGOS: OU SOBRE A ORIGEM DE TODAS AS VIOLÊNCIAS
Em oposição à vivência ou experiência mágica e mítica, una e indivisível, inconsciente ou insciente de si mesma, limitando-se a ser sem se pensar, o pensamento abstracto abre a Cisão na Unidade Original, cisão desde logo traduzida verbalmente numa antinomia: experiência & pensamento.
O pensamento, por sua vez, abrir-se-ia em sucessivas e consecutivas cisões, traduzidas em novas antinomias:
pensamento lógico ou abstracto & pensamento analógico ou simbólico
logos & mythos.
É então o pensamento 1ógico que, tomando a palavra, revelará as características do pensamento analógico. E dirá que:
O analógico ou mágico ou mítico ignora o tempo.
E ignora o tempo porque ignora qualquer ideia, qualquer abstracção: Tempo e espaço, por exemplo, não existem em ideia para o mágico.
Pensando por analogias e não por abstracções, não existem para ele as abstracções que são as ideias de tempo e de espaço, depois as de passado, presente e futuro, depois as de Civilização e Progresso, depois as de História, e assim por diante.
O pensamento abstracto aponta, naquilo a que chama pensamento analógico, aquilo a que chama mentalidade mágica, aquilo a que chama mitos. O mito, no entanto, enquanto ideia (e isto é fundamental ), não existe para o mágico. Existe sim como vivência ou experiência. O mito existe, isso sim, desde que existam abstracções, desde que exista pensamento abstracto.
CIVILIZAÇÃO PRODUTORA DE MITOS POR EXCELÊNCIA
E assim é lícito perguntar se as ideias mais abstractas (espaço e tempo; passado, presente e futuro; história, civilização e progresso) não são também os mitos maiores da civilização que a si própria se designa de Civilização, por antonomásia, e se toda ela - Civilização - não é um sistema intrincado de mitos, ou até a civilização produtora de mitos por excelência.
Não esqueçamos que a própria ideia de mito, sendo uma ideia é ainda uma abstracção e pode ser um mito.
Repare-se, num breve parêntesis, que não pretendo fazer a apologia de uma ou outra das realidades - da Unidade Original & da Cisão Posterior, - nem discutir a validade de uma e outra, o que foi ou devia ter sido: Para bem ou para mal (palavras que ainda correspondem a ideias e que podem não passar de mitos) os factos são factos e a evolução deu-se no sentido que se deu.
Importa sim é proceder a uma análise ou desmontagem da mitologia que constitui toda uma civilização que pretende precisamente não ter mitos. E que pretende não se contradizer, sendo precisamente a Contradição, o espírito incarnado da própria contradição, visto que foi o pensamento e nada mais quem abriu guerra contra o que antes dele havia: Sem "torcer" por um ou outro campo, sem participar no baile dos antis, tanto quanto possível, recusamo-nos a estar com um ou outro dos termos, seja de que dualidade e antinomia for.
LOGOS AGRESSOR DO MYTHOS
À cisão, polémica ou guerra inicial – logos agressor do mythos, exotérico contra esotérico, ciência contra sabedoria, amor da sabedoria contra sabedoria do amor - veio a filosofia e o seu acervo de sub-polémicas, com as quais se tem entretido e divertido bastante, supondo e às vezes conseguindo com isso entreter, divertir, distrair também e bastante o comum dos mortais. As polémicas da história (1) - a história das ideias e a outra, a dos eventos - nada significam, são apenas escaramuças aparentes a fim de manter as atenções convenientemente afastadas do problema capital: a dissidência, cisão ou divisão imposta aos homens pele poder racional, a guerra civil dos homens contra os homens, ou, talvez melhor: dos humanismos contra os homens.
Não se discute agora se para bem se para mal, ou se para ambas as coisas e ao mesmo tempo; o que convém por em evidência é que a divisão é posterior à unidade, a guerra foi declarada e não sofrida pela ordem racional, o logos é que se opôs ao mythos, e o caos é que sucedeu ao cosmos, isto é, a ordem inicial deu a desordem subsequente; (2) o que importa frisar é que à noite mítica se sucedeu a alvorada lógica, (3) ao pensamento nocturno o diurno, à voz subterrânea a voz solar e à dicção a contradição:
Ao reconhecer isto, ninguém pretende voltar ao princípio, ou a antes do princípio, mas vai sendo tempo de ver colocado o problema em termos mais justos para ambos os contendores, sem arrogância da parte do poder racional, que julga, ele só, ter direitos e zelos sobre o homem, reinando despótica, descricionariamente
Se há divisão e guerra foi a ordem racionalista que a criou e declarou; se confusão existe, ela sucedeu à fusão ou silêncio original; se o processo histórico é todo ele um processo divisionista e polémico e contraditório, aos princípios lógicos do pensamento se deve essa contraditoriedade fundamental; e se desordem há, só pode ser a racionalista.
Que a confusão racionalista - teorias, sistemas, ismos, logias, sofias, numa infernal barafunda - e a desordem lógica ou científica se queira dar precisamente como o cosmos sucedendo ao caos, a fusão sucedendo á confusão e a ordem sucedendo à desordem, isso não admira, porque saber é poder e é o poder, o político ou outro qualquer, quem legisla: inclusive quem decreta o que se há-de pensar e os nomes que se hão-de chamar às coisas; nada admira que tudo esteja trocado, pois assim convinha à ordem instaurada pela força e que pela força mantém o poder, o poder de legislar e decidir o que é ordem e desordem, fusão e confusão, caos e cosmos.
É a ordem estabelecida, o poder vigente, o estado de coisas vitorioso que inventou para a Polémica-Base os nomes em que se processa: mito e lógica, magia e ciência, exoterismo e esoterismo - eis alguns exemplos de antinomias decorrentes de uma ordem estabelecida estruturalmente antinómica, fomentadora de cisões e que só progride por antis, por agressões sucessivas e violentas, por negação sistemática, por guerra perpétua (4).
RACIONALISTAS CONTRA OS IRRACIONALISTAS.
Exemplo de esportiva e divertida sub-polémica é a dos racionalistas contra os irracionalistas.
Mas acontece que os irracionalistas são uma invenção dos racionalistas e a maior parte tem uma existência virtual, produto do seguinte expediente: tudo o que incomoda o racionalista, venha de onde vier, vai para um saco sem fundo chamado "irracionalismo”. Mas no fundo, porque o saco não tem fundo, nada lá está, nada lá fica. Fica apenas, isso sim, o cenário armado e em cena o conflito dramático, gravíssimo dos esclarecidos obreiros racionalistas contra os obscurantistas e filhos das trevas irracionalistas.
O racionalista, que tão subtil é nas distinções, que tanto exige (dos outros) coerência e ideias claras, que tão cartesiano se diz, não perde tempo, não hesita: para facilitar a posterior tosquia, enfia no saco do irracionalismo o Poeta também. Invariavelmente o bom racionalista resolve assim as dificuldades postas pelo Poeta e pela Poesia, porque ele sabe que a batalha está ganha e os assobios da geral garantidos se confundir nas polémicazinhas caseiras a única questão, a única polémica, a única guerra verdadeira.
Nenhuns, porém, nem racionalistas de facto nem irracionalistas de fama, querem, ao fim e ao cabo, desacreditar e desarticular o sistema, a ordem, a cultura vigente. Essa, para uns e para outros, é intocável. Porque dele, sistema, é que eles vivem e se governam. Nenhum afinal quer desacreditar o saber porque saber é poder e é dele (saber) que eles vivem (podem, querem, mandam).
Uns e outros precisam de massas (,assas humanas e das outras) para viver e sabem que a faculdade da "omnitude" (Dostoievski-Chestov) por excelência é a razão.
Para o cientista puro, para o puro filósofo - necessariamente racionalistas - os políticos são, regra geral, impuros racionalistas. (5)
Além de irracionalistas e por isso mesmo, acusam-nos então (ao abrigo do acordo ou tratado de mútua agressão fraternal) de forjarem as psicoses colectivas, as místicas e ideologias sociais, a mitologia ou propaganda política, a
chacina maciça, em suma, a Guerra - finalidade última e suprema de todo o fazedor de civilização que se preza e gosta de ficar na história.
DEPOIS DOS FACTOS CONSUMADOS
Acusam e não deixam de lavar daí também as suas mãos. Insurgem-se até em belos discursos (alguns televisados por grandes cadeias!), acusam os políticos e a sua ausência de espírito científico, a sua inabilidade para resolver positivisticamente e racionalisticamente os problemas, deixando tudo à improvisação e ao sentimentalismo. Tudo isto, é claro, depois dos factos consumados, depois de contra factos os argumentos serem já sopas depois do almoço.
Os puros isto, os puros aquilo insurgem-se e acusam, mas não fazem mais do que insurgir-se e acusar. O papel do racionalista é mais uma vez aleatório por muito simpático que seja o mister de pôr água na fervura militarista.
No derradeiro instante, no minuto decisivo, o filósofo puro recorre ao escapanço clássico: "sim, de facto os mitos do político são uma coisa horrível, mas neste estado de emergência são um mal necessário. Transijamos, pois".
E transigem. De modo que, no fundo e no fim, o filósofo acaba por considerá-los - aos mitos do político e ao político - um mal necessário, acaba por ratificar uma aliança que aliás já estava firmada desde sempre, desde que o estado de emergência, ou estado de crise, ou estado de sítio é o estado crónico das sociedades ditas civilizadas
ESTAS E OUTRAS ESCARAMUÇAS
Estas e outras escaramuças não devem iludir ninguém. E não iludem o observador imparcial. O que o observador vê e sabe é que a ciência conduz inevitavelmente à política e que, inevitavelmente, as puras ideias têm de se fazer impura acção, o puro racionalismo tem que transmudar-se em grosseiro irracionalismo. (6)
Os pacifico-racionalistas, se bem atentarmos, estão colaborando com aquilo que acusam. O humanista ou nacionalista vem, vestido de branco, com mais um humanismo debaixo do braço, justificando apenas o presente, as chacinas de um presente que se eterniza há séculos, com as promessas de um Futuro que nem ele nem ninguém sabe verdadeiramente qual seja mas que é indispensável e vital alimentar na esperança dos homens; enquanto o político manobra, trucida, cilindra, fuzila, chacina e faz explodir bombas termo-nucleares, vai o filósofo humanista, na cauda do cortejo, explicando com falinhas mansas que aquilo - o Terror – é no presente e por culpa dos homens, porque no futuro e graças aos homens superiores e cultos - os supremos representantes da cultura mais "civilizada" da terra - não será assim, será o Paraíso (e eis inseminado, artificialmente, mais um - o edénico - mito, numa cultura sem mitos!) . _
A partir do mito maior - o mito do progresso, do Futuro, do Paraíso - uma legião de mitos médios e menores trabalha assim ao serviço do Sistema, no sentido de iludir os que precisam de ser iludidos, de modo a não abrir a mais fina brecha na grande, impenetrável muralha que defende a cidade. Porque a cidade - a Civilização - não quer, por nenhum preço, revelar o fiasco, o fracasso, o malogro que foi.
Depois disto, será que os "pacíficos" racionalistas têm descaramento de acusar os que falam em nome do mito, de gente agressiva? De gente polémica, intratável, inconveniente? Será que estes e outros ensaios polémicos, polémicos
porque não podem ser outra coisa, ainda serão acusados de gosto da hostilidade perante as falas e mãozinhas mansas dos mansos racionalistas?
OS DA RAZÃO SEM RAZÃO
Não queremos ter razão, os da razão sem razão. A razão aos funcionários e profissionais dela pertence. Mas não queremos que eles, só porque podem, querem e mandam, nos tomem por parvos e invertam a ordem lógica das coisas sempre que isso convenha aos múltiplos e muitos interesses nada lógicos da dita ordem.
A ciência e quem a faz não tem as mãos tão limpas como pretende, no processo de Abjecção que tem sido a história da civilização ocidental. Detrás da ciência há sempre o móbil agressor. Escamoteiam-se evidências que não convêm, e impõem-se, propagandeiam-se as convenientes; e quem pode levar a efeito esta propaganda senão os órgãos competentes, dirigidos certamente por ideólogos e não por poetas?
Quem tem voz activa no mercado das ideias são os homens do saber e do poder. Porque os poderes, afinal, acabam sempre por estar de acordo, embora aparentem por vezes desacordo a fim de enganar o comum contribuinte As instituições afinal dão-se bem, mau grado as aparências. Estado e Igreja, Estado e Exército, Estado e Academias, Estada e - Universidade - acabam sempre por aliar-se.
Ora é através desta última aliança, que, através da infiltração universitária, os profissionais da inteligência comandam a cultura instituída, governam o homem, decidem do planeta.
RESUMINDO E CONCLUINDO:
Resumindo e concluindo:
embora difiram em questão de pormenor, embora a farsa das sub-polémicas e batalhas menores concorra, genialmente representada, para manter o estado de sitio indispensável às manobras de uns e de outros, forçoso é que o observador imparcial - o homem subterrâneo – conclua:
1º - As guerrazinhas ideológicas, as sub-polémicas esportivas têm servido apenas para:
a) - ocultar uma aliança e cumplicidade de fundo
b) - ocultar a verdadeira e grande guerra, os termos básicos em que assenta: logos contra mythos
c) - entreter as massas
d) - garantir a sobrevivência dos respectivos funcionários, uma vez que sem um jogo de razões e contra-razões, de prós e antis, de toma-lá dá-cá, os profissionais destas mesmas coisas não fazem negócio
2°- Filósofos puros e políticos impuros equivalem--se; mais, completam-se; mais ainda, aliam-se e lutam por uma finalidade comum.
Uns e outros são para uso de todos, de todos se servindo e governando.
Uns e outros usam a Propaganda, fábrica de mitos de uma cultura que pretende não os ter:
Uns e outros, profissionais da ideia e profissionais da acção, precisam de multidões para viver e por isso as tratam cerebralmente de comum acordo, promovendo a necessária mitologia ou caldo cultural onde miguem as sopas.
A uns e outros o que importa é ir aproveitando a margem de desfazamento entre o hoje e o amanhã – o futuro -, porque sabem ser a esperança ou esperação dos homens, o mais valioso capital a ter em depósito à ordem, no Banco de Família.
O que importa a uns e a outros é ir navegando nas águas turvas de um mito - o Progresso -, nelas levando a agua ao moinho que mais lhes convier.
Uns e outros têm mais amor à pele que às ideias, por isso o que importa, a uns e outros, é, invocando a grandeza, a dignidade, a elevação do destino humano (ou qualquer abstracção destas, muito gordas e luzidias) ir servindo a própria pele porque nenhum deles acredita verdadeiramente na humana dignidade que é a humana liberdade, mas tão só na vil, pessoalíssima e abjecta necessidade.
O que importa, a uns e a outros, é ir prometendo, indefinidamente prometendo, porque de promessas têm vivido e hão-de ir vivendo os homens, o que lhes evita pão, justiça e liberdade.
O que importa, a uns e a outros, é ir cultivando, a partir do mito maior - o Progresso – a macabra mitolatria que permita nos instantes críticos mobilizar a humanidade para uma guerra onde as únicas vítimas serão os homens e os únicos a ficarem de fora os salvadores dos homens.
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(1) a (3) Destas polémicas marginais é exemplo histórico a dos sofistas e socráticos, que Ernst Cassirer retrata assim:
"No evoluir da cultura intelectual grega não se encontra talvez maior tensão, conflito mais profundo, do que aquele que opôs o pensamento socrático ao pensamento sofístico. Contudo, a despeito deste conflito, os sofistas e Sócrates estavam de acordo." (In O Mito do Estado, pg: 79 da tradução portuguesa, Lisboa, 1961) .
"A despeito deste conflito" - sublinha Cassirer - "os sofistas e Sócrates estavam de acordo sobre um postulado fundamental", postulado que - não diz Cassirer mas conclui-se, seria a "morte ao mito":
Depois desta, a filosofia inventou outras polémicas ( a da fé e da razão que entreteve os ócios de muita gente) , polémicas ou desacordos, porém, que logo cessavam uma vez que o inimigo comum estivesse à vista e fosse necessário enfrentá-lo.
Note-se que se a Inquisição perseguiu homens de ciência, não deixou principalmente de queimar mágicos e outra gente de ciência nada oficial nem ortodoxa.
(4) Não há nenhuma ditadura, porém, que não aninhe e não alimente no seu seio a serpente da subversão, os descrentes e descontentes, os hereges, os desertores, os protestantes e opositores ao Regime. E não há nenhuma também que não organize a repressão o melhor que pode.
Contra as vozes individuais - as vozes subterrâneas - que viriam em todos os tempos denunciar a crise - críticos? -, a Crise crónica que tem sido a história ocidental e a crónica da Crise que tem sido a história dessa história, sempre a ordem racional soube manter seus pergaminhos, nunca deixando seus méritos por mãos alheias: calando, punindo, reprimindo - o ostracismo, a prisão, a fogueira, o manicómio, o cemitério, etc - quantos se opunham ao Poder do Saber.
Lembre-se aqui que Poeta é assim sinónimo de Crítico, ambos denunciantes da Crise, embora vulgarmente se chame críticos aos autores de folhetins semanais.
(5) Curioso notar que os puros racionalistas são autores de uma longa, balofa, retórica conversa contra a "mitologia política" de certas ditaduras e de certas democracias. Aquilo que a Máquina de Propaganda, comandada pelos políticos, conseguiu, consegue e conseguirá no sentido de aviltar o homem, tem sido anunciado por filósofos de várias tendências, armados em defensores da humanidade e arredores;
os mitos do "irracionalismo" político têm sido denunciados, não há dúvida, com suficiente irritação e assiduidade.
Mas dos mitos do racionalismo quem poderá falar? Quem quererá falar?
(6) Indirecta e anteriormente, os cientistas já deram aos políticos de má morte poderes técnicos que este usará como entender, segundo os seus mais ou menos irracionalísticos impulsos. ■
domingo, 9 de novembro de 2008
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