1-3- habitat-4> - ecologia do comportamento=ecologia humana – quadro orgânico da abjecção – inédito ac 1963-1964 de 5 estrelas
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AMBIENTE COMO DOENÇA
29/8/1963 - Quando se fala de felicidade, seria mais correcto falar-se de saúde mental numa dada cultura, sociedade ou época. E ao considerar a saúde mental na nossa cultura, sociedade e época, (do nosso mundo) há que ter em conta três ordens de factores que condicionam portanto a tão discutida felicidade:
1 - Os mitos menores alimentados pela máquina de propaganda, o noticiário nacional e internacional, os títulos, a histeria provocada e permanente das grandes imprensas ao serviço das grandes empresas ao serviço dos grandes capitais particulares ou do Estado, mitos que nos invadem pela rádio, pela imprensa, pela televisão, pelo cinema, pelo livro, pela revista, etc
2 - Para o envenenamento da atmosfera respirável não contribuem apenas os mitos. Mais reais, menos visíveis e espectaculares, as poeiras radioactivas, a poluição da atmosfera pelos resíduos da carburação, o ruído - são outros tantos factores que condicionam e conformam o homem da nossa cultura, da nossa sociedade, da nossa época.
3 - E só depois de ter em conta ambas estas ordens de factores, estaremos autorizados a ser juizes e críticos do comportamento "moral" dos homens: crimes, suicídios, alcoolismo, etc manifestações, afinal, de resistência às condições de inabitabilidade do planeta.
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MORFOLOGIA DO HABITAT
1964 - Nem só os físicos atómicos e a sua herança contribuíram para definir a espécie de ar que hoje se respira e, por maioria de razão, se há-de respirar amanhã. Nem só as poeiras radioactivas, nem só a poluição do ar atmosférico pelas explosões, nem só a água do mar onde caem bombas perdidas (as que se sabe e as que não se sabe) de onde são ou não são retiradas, nem só o clima de histeria internacional criado pela corrida aos armamentos, nem só a propaganda em torno das mitologias ou ideologias políticas, nem só a demagogia pró-paz, nem só os jornais, as agências, a rádio e a televisão, contribuem para formar o "pesadelo climatizado" em que o homem vive.
Outros factores e ingredientes o constituem:
a atmosfera de industrialização maciça;
a super-população e o isolamento dos indivíduos em unidades fechadas;
o ruído difuso que corrói, o ruído directo que lacera;
o incremento de objectos domésticos e electrodomésticos, a alienação intelectual e afectiva a esses objectos, o espaço fechado dos arranha-céus, a desproporção entre o indivíduo e os espaços monstruosos edificados nunca a pensar nele;
a respiração física e moral dentro de ambientes viciados, o tédio intrínseco às super-organizaçães e respectivas hierarquias;
a ultra-burocracia, a velocidade;
a agressividade do trânsito automóvel sobrepondo-se ao peão e ferindo, golpeando, empurrando;
a devassa da vida privada, a que procedem as polícias com pretexto em trabalhos de investigação;
as devassas à intimidade do domicílio (livros, roupas, papéis, gavetas, etc);
a censura de actos, palavras, escritos;
a chantagem e a delação;
os interrogatórios e a lavagem de cérebro;
os tribunais e as câmaras de tortura;
a espionagem e a contra-espionagem., não só ao nível das relações internacionais - deteriorando na origem qualquer hipótese de convívio ou diálogo entre países – mas ao nível das relações individuais, no trato quotidiano e profissional (o empregado de uma grande empresa, por exemplo, onde pode ser espiado e submetido a técnicas de chantagem sob ameaça de perder o emprego);
a pena de morte efectiva ou a pena de morte disfarçada, intensificada através da mobilização militar obrigatória;
a escravatura efectiva ou a escravatura disfarçada de funcionalismo médio ao serviço do capital financeiro e do Estado;
os investimentos financeiros postos ao serviço do armamento e retirados à bolsa do contribuinte que, além desse, esportulará mais o imposto de sangue e quantos impostos a cadência inflacionária de todos os regimes lhe impõe.
Mas nem só, nem só estes pequenos nadas constituem a paisagem que rodeia, modela e determina o indivíduo: os valores, os chamados valores que filósofos fabricam nas universidades, discursam nas academias, inserem nas revistas da especialidade;
as chamadas controvérsias ou colóquios de Genebra;
as chamadas doutrinas ou teorias, ou humanismos, são ainda e também o habitat do homem "civilizado".
Arterioesclerose, depressão nervosa, cancro, alcoolismo, intoxicação pelas drogas medicamentosas ou alucinógenas, suicídio, acidentes de viação, acidentes de aviação, criminalidade - parecem ser os surtos endémicos protagonistas da comédia.
Agredido, bombardeado, atacado pelo ar que se respira, posto à prova nas suas defesas, na sua resistência e no seu poder de superação, as doenças epidémicas são apenas a única forma que resta aos indivíduos de reagir e sobreviver: doente, mas sobrevivente. As drogas ou "paraísos artificiais” já não chegam para atenuar a dor de existir em tal tempo e mundo; álcool, morfina, cocaína, LSD, tranquilizantes, narcóticos, já não chegam para atenuar a morte; por isso adoece, que é a única forma de estar vivo numa civilização de morte .
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A BESTA ADORMECIDA
1964 - Alienado às forças que o manejam, comandado por causas que desconhece, mistificado por mitos que inconsciente ou involuntariamente alimenta e coadjuva, o homem das sociedades industriais (a leste e a oeste, capitalistas e socialistas), por muitos desportos que pratique, por muitas olimpíadas em que participe, por muito tecnologia que o conforte e muitos ideais de propaganda que o embalem, por muitos governos que o sirvam mas que ele acaba por servir, é apenas um drogado, dormindo um interminável sono cataléptico, letárgico ou sonambúlico.
A máquina humana funciona apenas e sempre de meio para servir fins alheios, de objecto para uso dos que, em nome da pátria, do progresso, de deus, do partido, da classe, da liberdade, etc., dele se servem. Atrofiada ou hipertrofiada, conforme importa ou interessa às instituições que a usam, alienada a tudo o que a transforma de sujeito em mero objecto ou utensílio, a máquina humana que os "humanistas" designam de maravilhosa é para cada indivíduo, à mercê dos "humanistas", apenas um pesadelo, uma doença, um fardo.
O desporto - mentira máxima dos "humanistas" - não se destina a desenvolver a máquina e a coordenar-lhe harmoniosamente as funções mas apenas a fazer dela a "máquina de competições" que sirva nas pistas e nos estádios. O desporto, no clima de alienação geral, é apenas uma fábrica de mitos com que se jugulam massas ou se estabelece competição de homem para homem, de região para região, de cidade para cidade, de país para país, de continente para continente. O desporto é mais uma força de alienação, uma forma de adiar e distrair, de tornar dóceis grandes massas humanas para os fins últimos que as potências se propõem, de as escravizar à vontade dos que (hipocritamente em nome delas) delas decidem.
O habitante das sociedades hiper-organizadas, dorme. Este "sono", porém, não tem o carácter de um sono sádio e reparador, mas sim o carácter mórbido de uma intoxicação colectiva.
Karen Horney chamou-lhe a "personalidade neurótica do nosso tempo", mas não é necessário perfilhar a doutrina psicanalítica para reconhecer um estado ou clima geral para o qual os homens procuram remédio em (paradoxalmente) mil outras formas de sono, esquecimento ou intoxicação: álcool, drogas, estupefacientes, religiões, ópios - eis os sonos a que recorre para não se lembrar que dorme. Ainda que inconsciente, o estado de alienação é para ele insuportável a procura derivativos, ersatzs que o adormeçam e entorpeçam mais profunda, mais completamente.
Neste contexto, se algum há com forças para reagir, é ele afinal que adquire sintomas neuróticos. O que reage, por explosão ou descontrole de nervos, por uma revolta ou inconformismo sistemáticos, às condições mórbidas do ambiente, à sociedade doente, o que resiste e reage, é afinal o inadaptado. O que surge nas clínicas para curar a sua "neurose" é –efectivamente o amoral e às vezes o suicida, o que ainda possui demasiada saúde ou individualidade, o que procura "curas de sono" porque tem ainda consciência do sono colectivo. Para os que se julgam sãos, é ele o doente. Mas para quem saiba que o doente é a sociedade e doentes os que se incorporam nela sem desajustes, - facilmente se concluirá que os neuróticos ou anormais são ainda, no meio da demência colectiva, os únicos sãos.
Pensaram alguns que, se na sociedade está a doença, ninguém individualmente poderá nada contra um estado de coisas colectivo.
Freud e a psicanálise, Mesmer e o magnetismo animal, por exemplo, teriam sido tentativas, historicamente localizadas mas frustradas, de curar as neuroses individuais.
Pensaram outros, entretanto, que a político-terapia seria um caminho, porque só transformando politicamente as sociedades, o indivíduo poderá curar-se.
Até agora e entretanto, porém, as soluções políticas totalitárias assemelham-se muito àquela receita panglossiana que, para curar a dor de cabeça, manda cortá-la. Cortando o mal pela raiz, as soluções totalitárias teriam suposto que eliminavam o mal - a neurose generalizada - apenas porque eliminaram de facto o sujeito ou indivíduo. Se era isso o que se pretendia, (o que vinte séculos de retórica humanista judaico-cristã pretenderam com a exaltação do indivíduo e da "pessoa humana") então já o conseguiram. E acabaram-se os problemas.
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
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