quinta-feira, 6 de novembro de 2008

LEITURAS 2012

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1977

A REACÇÃO DE IVAN ILLICH

Quando, no livre exercício da imaginação criadora que é o seu oficio, Ivan Illich torna público mais um livro seu,é clássica a reacção: uma cáfila de zelosos funcionárias do Sistema cai-lhe em cima e vá de morder no enguiçado magriço até mais não.
Desta feita, houve um intermediário: Michel Bosquet, valendo-se da documentação armazenada por Ivan Illich, escreveu no semanário «Le Nouvel Observateur» um artigo subordinado ao titulo «Quand la Medecine Rend».
Embora Michel Bosquet seja uma admirável figura de pensador e de jornalista, embora a sua formação marxista não o tenha impedido de manter lúcido e aberto o espírito crítico, permito-me discordar do seu método de actuação.
Consentir que sobre determinados temas incida o "debate" é já, de certo modo, um colaboracionismo com as manigâncias do Sistema.
O debate, a controvérsia, é um dos derradeiros alibis a que o Sistema recorre, quando se vê cercado de argumentos irrespondíveis por todos os lados, para sobreviver e fingir que ainda podo ter (alguma) razão.
Ter aberto um debate sobre se a Medicina é ou não fábrica de doenças e doentes, parece à primeira vista uma atitude irreverente, mas acaba por ser ainda bastante conformista.
Não sei se o próprio Ivan Illich se daria ao trabalho - como o fez Bosquet - de argumentar com números e estatísticas, em tal caso. Para quem conheça um pouco do seu pensamento anarco-convivialista, o problema é claríssimo e não necessita de números. Essa afirmação, que só a fariseus escandalizará - a Medicina, arte de fazer doentes - é perfeitamente lúcida e lógica, se a virmos inserida no contexto geral de onde nunca deveria ter sido arrancada.

A Medicina não é mais nem menos culpada, no campo da Biocracia, daquilo que faz e dos resultados a que conduz. Mas qualquer pessoa, sem precisar de ir a Paris, percebe que a Medicina entraria em contradição mortal consiga própria se, de facto, fosse a "arte de curar" em vez de ser a arte de adoecer.
Os tecnocratas da Medicina (que tendencial e realmente a dominam hoje) não se coíbem de afirmar, de proclamar que ela é uma Indústria. Até se orgulham disso. Já largamente abordei o problema no opúsculo «Do Biocídio à Biocracia» (Colecção Mini-Ecologia, n°- 3) e no n°. 1 da Col. "Sine Qua Non'' (Edições M.E.P.).
A partir do momento em que a Medicina está instituída como indústria, seguirá fatalmente a tendência de todas as indústrias que é alargar o mercado para o seu produto.
Considerando o doente um consumidor, eis que só um parvo, um ingénuo ou um tecnocrata ainda perguntará porque está interessada a Medicina em fazer doentes, em vez de os curar, e porque não quer nem pode ela fazer outra coisa:
Na opinião de Ivan Illich, as instituições têm um forte instinto de sobrevivência e não abdicam assim dos privilégios. Ora a Medicina é uma instituição: logo, pela simples lógica e sem precisar de recorrer à exaustiva demonstração estatística de Michel Bosquet, a Medicina tende a perpetuar-se através de uma suposta, inventada, pré-fabricada inevitabilidade.
O que nós, ambientalistas, teremos a censurar à Medicina não é, pois, que ela seja uma indústria e que como tal actue, fabricando doentes. Contraditório seria é que a Medicina, em vez de fabricar doentes, os eliminasse. Estaria a arruinar-se como indústria o que, então sim, sob o ponto de vista económico, seria censurável e a todos os títulos desastroso.

A BIOCRACIA VEM MULTIPLICAR O NEGÓCIO DA TECNOCRACIA

Como logo se percebe, a Medicina vive interligada aos interesses, à inércia, à rotina e à lógica interna de outras sacrossantas indústrias e instituições.
Uma relação claríssima, por exemplo, é a que existe com a instituição ou indústria automóvel.
Será preciso, ó meu Amigo Michel Bosquet, você desunhar-se a mostrar estatísticas, para demonstrar que o automóvel serve para fornecer contingentes admiráveis de estropiadas à indústria médico-traumática, à indústria hospitalar ?
O automóvel será, como por simples observação diária se comprova, um das pilares da nossa sociedade da abundância, que não poderá abrandar no seu ritmo de fazer mortos e de alimentar assim a indústria funerária que, coitada, também precisa de ajuda. Não devem ser só os médicos a comer.
Tudo isto é explicável sem grandes esforços a partir de Ivan Illich e de uma das suas ideias-chave: a medicalização da saúde, a institucionalização da Medicina, a industrialização do homem.
Quer dizer: não foi por acaso que a Tecnocracia se aperfeiçoou em Biocracia. Tornando os partos cada vez mais violentos, fomentando toda a indústria alimentar degenerativa, ela, a Tecnocracia, triplicou o negócio que enquanto Tecnocracia não era suficientemente próspero para as suas ambições de lucro.

O CANCRO CONTRIBUI PARA O CRESCIMENTO ECONÓMICO

Apontámos alguns exemplos de como a Tecnocracia, através da Biocracia (ver lista alfabética de manipulações Biocráticas) multiplica directamente o negócio.
Mas não quer isso dizer que muitos outros campos da Tecnocracia não contribuam, menos directamente, quer dizer, com nexos causais menos óbvios - para a proliferação da indústria propriamente biocrática.
As centrais nucleares é claro exemplo disso. Se se pensa que pode haver revolução social, humana e política (quer dizer, liquidar literalmente a Biocracia, ou manipulação do homem pelo homem, forma reforçada da exploração do homem pelo homem) basta raciocinar sobre o contingente de cancros e degenerescências genéticas que as centrais produzem, fabricam. Com o protesto da distinta classe médica ? Eis o que me parece bastante para duvidar. O que vemos e ouvimos, maiormente, é o aplauso e o agrément explícito dela, embora a atitude mais frequente seja o prudente abstencionismo.
Como se calcula, com os cancros prosperará o negócio das bombas de cobalto, que se não me engano devem pertencer ao mesmo ramo fabril das outras ... bombas, e prosperará todo o negócio ligado ao enxerto de órgãos, de pernas, de orelhas, de narizes, de bisturis, de modo a satisfazer as necessidades das futuras gerações de "abortos", de meninos mais ou menos mongólicos, de diminuídos mentais e físicos, enfim, de talidomídicos em geral, indústria admirável essa que assegurará a prosperidade de outras tantas indústrias biocráticas, o crescimento económico das nações.

TESES SIMPLES E REVOLUCIONÁRIAS

Só o facto de os eminentes técnicos, os excelsos especialistas, os magníficos mestres, os insuperáveis catedráticos não terem tempo de raciocinar (tão ocupados andam em saber e ter conhecimentos), pode explicar que teses tão simples, tão óbvias, tão humanas e terra a terra como são as teses de Ivan Illich sofram esse complicativo processo de controvérsia em que entrou, por exemplo, o já referido «Le Nouvel Observateur» (porque a controvérsia é comercial, também e evidentemente).
Os naturistas demonstraram há muito que a medicina alopática é fundamentalmente sintomatológica, logo reformista, logo fomentando o mal que depois diz ir combater. Enquanto for sintomatológica, a medicina terá todo o interesse em fabricar doenças e doentes, de contrário nega-se como indústria, nega-se como negócio e comércio que deve ser, que tem de ser.
Como instituição de caridade - paternal, reformista - ela fabrica os "pobres" a quem depois há-de dar a esmola. Sem pobres, o que seria dos que pretendem, com eles, comprar a virtude e os céus ?
Acusa-se Ivan Illich de nos complicar a vida quando ele vem contrariar o jogo das instituições e sua engrenagem triunfalista mas homicida e suicida, quando ele põe à mostra a careca da questão energética; acusou-se de "criar" tremendos problemas à sociedade quando ele propôs a desinstitucionalização do Ensino, mas só quem se desabituou de pensar, de imaginar - profissão essa que é a de Ivan Illich - não compreende que as propostas de Ivan Illich são todas, precisamente, no sentido de simplificar pela raiz aquilo que o carácter institucional dos serviços complica, por natureza, por função, por necessidade intrínseca de fazer prosperar a próprio negócio.
É óbvio que a medicina não pode aceitar os pressupostos das alternativas das medicinas naturais, não pode aceitar a «descolonização do doente" (como não pode aceitar a "descolonização do aluno») porque é dele, doente, que se alimenta o negócio.
Mas é óbvio que toda a engrenagem médica (astronomicamente cara, congestionada, reclamando cada. vez mais vorazmente mão-de-obra e mais vidas, mais corpos, mais doentes) é obvio que a engrenagem escolar, é óbvio que a engrenagem energética não consentirão alternativas aos seus monopólios, precisamente porque simplificar a vida será subverter os monopólios que de cada vez maior complicação vivem: o monopólio da saúde, o monopólio do saber, o monopólio da energia.
Apontei algumas hipóteses de trabalho sobre esta subversão num ensaio publicado em livro intitulado «Depois do Petróleo, o Dilúvio». Muito claro, no entanto, me parece ter ficado, quem é o único beneficiário desta subversão e desta simplificação naturista: o chamado consumidor é o único que largamente, profundamente e decisivamente beneficiará das alternativas.
Mas - cuidado, amigos ! - o consumidor é amestrado para adorar o sistema e as respectivas instituições. Para o supor indispensável e infalível. Para, inclusive, ladrar contra Ivan Illich e Michel Bosquet, quando estes lhe vão dizer a verdade e só a verdade.
Enquanto colonizado, longamente colonizado pela ditadura médica que o coloniza, o doente julga que tudo será, para ele, mais complicado se tiver que dispensar o "conforto", a eficácia, o gigantismo da santa madre instituição, da respeitada e temida medicina. O doente – reduzido a consumidor - julga que não pode passar sem os monopólios da Água, do Petróleo, da Energia. Julga que não pode ter saúde, fora do monopólio da Saúde que é a Medicina. Julga que não pode passar sem médico como não pó de passar sem canalizador, sem o técnico que lhe repare o esquentador, sem o especialista que lhe aperte as torneiras, sem o fornecedor que lhe distribui a botija, sem o funcionário que lhe põe o clic já está.
Mas este engano é que se lhe tornará fatal.
Na dependência da engrenagem em geral e da engrenagem médica em especial, o consumidor em geral e o doente em particular é manipulado e frustrado, sempre, sem possibilidades de auto-bastança, de alternativas, de cada vez que o técnico falha, não comparece, vai a banhos ou saiu para o fim de semana.
De cada vez que chama o médico e o médico não comparece - o que sucede com frequência assaz verificada - eis o doente em transe, ei-lo em verdadeiro pânico, pois julga que médico e saúde andam indesligáveis.
Educar uma criança é prepará-la para uma progressiva auto-suficiência e o naturista -consumidor que soube emancipar-se gradualmente da tirania da indústria médica o da tirania da indústria alimentar (entre outras tiranias) - dá um dos exemplos mais educativos e mais belos para um verdadeiro futuro de libertação humana, democrática e popular.
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(*) O artigo de Michel Bosquet intitulado «Quand la Medecine rend Malade» foi publicado no semanário «Le Nouvel Observateur», números e 520, de 21 e 28 de Outubro de 1974.

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